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domingo, 19 de junho de 2011

O CORDEL

A literatura de cordel tem natureza nordestina, não resta dúvida. Promanou de fatores diversos, entre os quais o isolamento do homem rural, analfabeto, de religiosidade simples, enfrentando sacrifícios, a ouvir, pela boca das visitas esporádicas e nas feiras sertanejas, estórias de cangaço e cangaceiros, a padecer o drama das secas e a violência dos ricos, a memorizar assassínios entre famílias inimigas, de linguagem chã, comunicando-se com o emprego de vocábulo pobre e parco, por virtude da falta de relações humanas. Não há que dizer senão o trivial reduzido às circunstâncias da roça, da bóia, da chuva ou da falta dágua, da bicheira dos animais. Marido, mulher e filhos desses trechos de chão perdidos falam pouco porque não têm interlocutores. Daí que com poucas palavras se transmitiam, nos tempos velhos, idéias e impressões no ajuntamento familiar. A linguagem possuía sonoridade latina na boca desses matutos - jenta, lúa, men-ã, por janta, lua, manhã, eram modos de dizer da herança avoenga.

Violeiros, nos sortidos mercados semanais de vilas e cidades, recitavam versos e emocionavam platéias. Cantadores ofereciam o espetáculo dos desafios, sob aplausos, risos e admiração. Poetas populares cantavam façanhas, criavam mitos, lembravam santos milagreiros, reproduziam idílios de donzelas e príncipes encantados.

No século XIX, quase no final, iniciou-se a divulgação desse cancioneiro, - fisionomia do Nordeste, das suas crendices, dos seus feitos, dos seus heróis, da sua fé, também da sabedoria do homem que versejava. A revolução industrial que sacudiu os alicerces da sociedade já se tinha evidenciado, e cada vez que se escoavam os anos na voragem do tempo a máquina fazia outros prodígios. Desenvolveram-se as comunidades. Encurtaram-se distâncias. As fábricas produziram veículos, aparelhos de costurar, aeroplanos, remédios, instrumentos terríveis de matança. O cinema, o rádio, o rádio de pilha, a televisão e os sistemas educacionais alcançaram povoações e o livro multiplicou-se.

A literatura de cordel haveria de declinar com as profundas modificações verificadas na vida nordestina. Revolucionaram-se hábitos e costumes. Sepultaram-se preconceitos. Houve mudanças no comportamento do homem, da mulher, da família, do corpo social. Todos os processos culturais de vida padeceram severas influências da civilização industrial.

Declinou, é verdade, mas o cordel ressurgiu e cresceu, mais divulgado e vendido, por todos os cantos do país. Aprimoraram-se as edições e aumentou o seu mercado de vendas. Intrometeu-se na política partidária, cantando méritos de líderes estadistas. A nova vida do cordel se deu porque se tornou objeto de estudos sérios para análise dos temas e mensagens sociais e espirituais que ele transmite. Penetrou as universidades e vive no ensinamento dos críticos como irrecusável arte popular.


A. Tito Filho, 15/11/1987, Jornal O Dia

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