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sábado, 25 de junho de 2011

ANIMAIS

Recordo-me das velhas e saborosas crônicas de mestre João Ribeiro, o culto mestre da língua portuguesa. Numa delas disse que o povo sempre fez emprego dos nomes de animais para designar certos aspectos da vida. Alguns nomes de doenças provieram de bichos como o sapinho e o cobreiro. Ao muque se chama lagarto. Canalha provém de cão e porco é o tipo sujo, física e moralmente. Capricho dimana de cabra. De gato se fez gatuno e o cachorro entrou em música e disco do popular Soriano. Amacacado bem diz do sujeito moganguento, gaiato. Rato e ratazana estão por todos os cantos deste País de mordomias suculentas. Que dizer de águia, batismo de pessoa grande, sapiente, poderosa de inteligência? Burro figura o recém-formado em Direito, por exemplo. Diz-se cascavel da mãe perversa com os filhos. Tirou-se de cavalo o cavalado, bem provido que faz lembrar os amantes de Messalina, na Roma de outros séculos. A pomba e a rola enriquecem as produções literárias dos poetas, em que figuram como mensageiras da paz e de arrulhos de amor, sempre de ternura inigualável. Galo representa o macho, dono do galinheiro, onde impera, herói sem rival. Peixão quer dizer mulher tentadora, dessas, de piscina de clube elegante, pernas e coxas de fora, por trás o fio-dental. Ao cabo de contas essas denominações partem da sabedoria popular, força evidente no enriquecimento do vocabulário, pela analogia ou semelhança que os seres e os objetos têm entre si, uns em relação a outros tipos e circunstâncias na vida de cada um. Bofe, parte desprezível da rês, vale a mulher feia, rugenta e de banhas dependuradas, da mesma forma que bucho. E veado? Que parecença tem o arisco animalejo com o homossexual? Li certa vez, em Tenório de Albuquerque, que o mais completo defensor do homossexualismo na Alemanha tem o nome de Hirschefeld - e hirsch quer dizer veado em alemão. Assim o povo, mais sabido do que muita gente, utiliza-se de denominações específicas e as estende a outras por analogia. A gíria vigora como dos fenômenos mais antigos da língua e nasce da inigualável sabedoria das gentes. Vaca, no conceito popular, diz da mulher que aceita qualquer homem. Galinha é a namoradeira, que tem um homem em cada esquina, mulher fácil. Potranca corresponde à tipa bem carnuda, traseiros fornidos, carne de sobejo, justamente a que deixa o sujeito de água na boca. Em décadas passadas gato era a concubina, a cabocla teúda e manteúda de um gajo só. Hoje gato vale jovem bonito, reclamado pelas garotas. Gata, do mesmo jeito, se chama mulher bonitona, manjada. Pantera, que invadiu o colunismo, figura como a elegantíssima, arrecadadora de todos os olhares, ricona de charme à custa de várias operações plásticas e variado sortimento interno de chumaços ou silicone. Piranha arranca tudo do indivíduo, como a Vamp, dos norte-americanos. Pantera foi a célebre Angela Diniz, fofa de juízo, com um triste fim numa tarde que morria com ela...


A. Tito Filho, 25/11/1987, Jornal O Dia

PRECONCEITO

Vigora no Brasil a generalizada crença de que faliu o ensino público. Examinemos o assunto nos seus fundamentos. Os incautos acreditam que entre os brasileiros não existe preconceito de cor, mas esse preconceito sempre se evidenciou, embora não assuma o aspecto de segregação como nos Estados Unidos. Entre nós a ojeriza do branco ao negro se verifica de modo velado, em muitos grupos sociais e na burguesia endinheirada. Recorde-se que a abolição no Brasil não acarretou os males que a mesma circunstancia impôs aos norte-americanos, pois lá o sul, milionário de latifúndios e de agricultura, passou a terra arrasada, extinguindo-se fortunas com a guerra civil. No país de Lincoln o processo econômico fez que o ódio fosse intenso ao escravo sulino, que apenas recebia casa e comida por conta do trabalho, enquanto o norte convocava o negro para a agricultura e a indústria, concedendo-lhe liberdade e salário. Demais de tudo, por causa da guerra, o sul empobreceu e o fausto e o luxo desapareceram das suas mansões suntuosas. Depois destas considerações, pergunta-se se o ensino público faliu neste Brasil doente e sem cura. Considere-se agora o acentuadíssimo preconceito social brasileiro. Nesta nação de golpes financeiros e militares, de eleições e peso de ouro, de banqueiros insaciáveis, de bodas, debutação, casamentos e batizados milionários nas camadas da burguesia ociosa, moça do colunismo social, seja na donzelice ou na virgindade, não se casa com moço pobre ou de cor. Sonha com o grau do doutor da família fina, descendente de barões e baronesas, e que passará a viver nas costas do sogro, até que taponas, depois da terra madrugadina, separe o casalzinho sem amor. Menina de alta-roda jamais se casaria com um balconista, e só aceitaria o preto que fosse baludo, cheio dos cobres, ou importante na árvore genealógica ou na política. No Brasil prevalece o preconceito social e todo o seu cortejo de fatuidades. Existem duas camadas distintas: a dos miseráveis e a endinheirada. Assim, com a explosão demográfica dos anos 40, os proletários buscaram os estabelecimentos do governo, e neles, sob a bandeira da democratização do ensino, se abrigaram em massa, na conformidade do crescimento populacional resultante do parimento de gente faminta. Surgiram por todos os lugares os cursos e colégios particulares, uma indústria de lucros fabulosos, em que se matriculam crianças e jovens burgueses, que podem pagar mensalidades opulentas. Ao ensino público se destinam os filhos da miséria ou dos miseráveis assalariados de funções públicas e particulares - os alunos que não se alimentam, as caboclinhas de cabelo pixaim, a gente miúda do outro Brasil, do Brasil doente, dividido entre pobres e ricos. Na escola pública a burguesia inexiste. Rico de dinheiro e de ignorância não se mistura com pobre da periferia ou da favela.


A. Tito Filho, 25/10/1987, Jornal O Dia

BOA E MÁ IMITAÇÃO

Macaquismo deve corresponder ao hábito de macaquear, ou arremedar da maneira que faz o macaco, imitar de modo ridículo. O brasileiro gosta de copiar o pessoal dos Estados Unidos da América do Norte. Macaqueia em tudo: no copo de uísque, nos concursos de misses, nos prêmios de estatuetas, em muitas modalidades esportivas, no hambúrguer, no cheeseburger - em tanta cousa a imitação que a gente pensa que Nova Iorque fica no Brasil. Até o hot dog, ou cachorro-quente se come em qualquer casinha do território piauiense de minha amada Nossa Senhora dos Remédios. Só que nas imensidades do Piauí cachorro-quente não se faz de salsichas, mas picadinho de carne cozida, diferente do restante da pátria idolatrada.

Como se entende, os patrícios não da pátria idolatrada.

Como se entende, os patrícios não apenas imitam os nascidos nos States, mas copiam mal o processo civilizatório dos estadunidenses, e desprezam o que eles têm de bom, de lógico, de racional, de justo. Por exemplo: não existem muros entre as casas, lá. Fazem-se linhas divisórias brancas no chão, ou filas de arbustos baixos indicam os limites de cada residência. No Brasil, constroem-se em redor dos prédios de moradia paredes fortes e altas dotadas de portões de aço.

Faz muito tempo, Antônio Bento, no Rio, discutiu com a amante, no apartamento, e no calor das ofensas mútuas deu pancada na mulher, utilizando objeto de aferrolhar portas. A vítima gritava por socorro. Receoso de atrair atenções, Bento ganhou a rua. Quando voltou a mulher estava morta. Procurou logo o fogoso homem esconder o crime. Arranjou petrechos (petrecho mesmo, caro revisor), serrou os membros do cadáver, arrumou os pedaços num baú e enterrou a carga, de madrugada, no quintal de amigo. Descobriu-se o crime e a imprensa completou o quadro publicando manchetes sensacionalistas, - o réu não passava de bárbaro e cruel. Em vez da informação pura e simples dos fatos, os jornalistas adotaram severa posição contra o réu confesso do crime que ele não queria cometer. O júri foi implacável: anos de cadeia para o criminoso - embora este não praticasse gesto desumano e torpe, pois, sem ódio, apenas serrou um corpo sem vida, com a intenção de conservar o bem da liberdade.

Nos Estados Unidos, o médico Sheppard foi condenado a prisão perpétua por haver assassinado a esposa grávida, crime que ele sempre negou. A imprensa, porém, não o poupava em comentários violentos. A Suprema Corte rejeitou a condenação do médico, sob o fundamento de que a publicidade da imprensa imbuiu a comunidade e o júri de preconceitos contra Sheppard, que aguardou solto novo julgamento. Os tribunais devem proteger os acusados contra a publicidade prejudicial. Não se devem acolher juízos apressados das entidades policiais. Medite-se na circunstância de que sempre seja mais correto um criminoso fora da prisão do que um inocente privado de um bem luminoso como a liberdade.

Os autores do impiedoso massacre do jornalista Helder, segundo a Polícia, foram soltos por ordem da Justiça, uma vez que nada contra eles se demonstrou como verdadeiro. Carregarão, porém, pelo resto da vida o fardo pesado da acusação do assassinato - embora a opinião pública se mostrasse incrédula dos resultados do inquérito dos detetives oficiais.


A. Tito Filho, 25/12/1987, Jornal O Dia

sexta-feira, 24 de junho de 2011

SENSIBILIDADE POÉTICA

Quando fazemos humildes comentários em torno da tristíssima situação nacional, em que das instituições sociais, governo inclusive, desapareceu o sentimento de responsabilidade, alguns pensam que nos excedemos na censura e na crítica severa. Não estamos sós, todavia, de vez em quando, vozes de compostura cívica dirigem sermões aos peixes ou pregam no deserto de homens e idéias, da forma que Osvaldo Aranha disse no Brasil. Temos agora a companhia honrosa de Ferreira Gullar, maranhense de nome José Ribamar Ferreira, nascido no ano 30 - e parece que os intelectuais da ilha de São Luís não gostam do Ribamar, como Sarney, batizado José de Ribamar também. O poeta Gullar não faz poesia sem o cotidiano, a vida trivial, comum, como ele acentua em escritura para a imprensa. Condena o abominável sistema do capitalismo perverso, em que o amigo deixa de ser amigo para ser bandido, para trair o amigo.

As amizades - sustenta - os valores, e o afeto nada significam. Sufocam-se a poesia, a música, a pintura. Só interessa o dinheiro para dissipação. Os políticos para Gullar perderam a noção de patriotismo. Há no país estado de calamidade, fome, analfabetismo, doença. Pior: o rock, música importada, torna-se vergonha, invadiu o mercado e domina, faz 30 anos. O Carnaval passou a diversão de milionários no sambódromo do Rio de Janeiro. O esquema comercial - denuncia o poeta - matou sambistas e passistas. Fantasias existem acessíveis somente aos ricaços dos lucros fabulosos. O protesto vem em forma de poesia: "Façam a festa/ cantem dancem/ que eu faço o poema duro/ o poema-murro/ sujo/ como a miséria brasileira/ Estação Primeira de Mangueira, Salgueiro/ gente de Vila Isabel e Madureira/ todo/ façam.../ poema obsceno".

Desde 1960 denunciamos a civilização empacotada brasileira. A falência moral e espiritual da nação, hoje criminosamente apoiada sobre os interesses bem confessados de uma minoria de engravatados surripiadores de riqueza de um novo digno de sorte menos mesquinha.


A. Tito Filho, 24/10/1987, Jornal O Dia

CIÊNCIA E PACIÊNCIA

Mais de vinte anos o nosso conterrâneo do Piauí - Samuel Dourado Guerra dedicou ao estudo do vocabulário - e fez pesquisas pacientes, nos domínios da etimologia e da morfologia, das quais concebeu um dicionário utilíssimo aos que buscam conhecer significados e correto emprego das palavras portuguesas.

Não se ignora que o nosso idioma provém das lentas modificações que o latim sofreu na Península Ibérica. Os dominadores sofreram estragos na língua que falavam, por virtude dos hábitos fonéticos dos povos dominados. Celtas e iberos só com grande esforço de voz reproduziam o d intervocálico. Assim, o pede romano passava a pee e, afinal, na forma vigente, . A raiz, porém, se encontra na origem latina ped, donde os derivados pedestre, pedal. De ovis, ovelha, da língua do Lácio, se fez ovino, mas ovino não vigorava na fala do povo, porque este deu preferência às formas mais expressivas, mais cheias de vida - e empregava, em lugar de ovis, o diminutivo ovícula para designar ovelha, depois das lentas transformações fonéticas de ovícula (ovilha, ovelha). De ovelha se fizeram ovelhum, ovelheiro, na língua de Camões.

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Os povos têm hábitos fonéticos. Brasileiros e portugueses reproduzem com dificuldade o grupo vl - daí por que Vladimir se transmuda em Valdimir. E o povo emparabolam = parabola = parabla = paravla deslocou o r para o lugar do l e vice-versa: palavra.

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O português se enriqueceu também do elemento árabe ainda na Península Ibérica. Incorporaram-se ao léxico centenas de palavras, a exemplo de açougue, alfinete, açude, almofada, almoxarife, açucena, açúcar e quantos derivados se façam dos arabismos. Que dizer do grego? Fonte de batismo de inventos, de teorias filosóficas, de cousas da medicina - os elementos gregos vivem na linguagem de todos os dias, como em telégrafo, telefone, teologia, cardiopatia e centenas de outros.

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Inglês, francês, espanhol, italiano, alemão, japonês, hebraico juntaram muitas palavras ao português - resultado de relacionamento entre nações e da necessidade dos empréstimos lingüísticos. Não se pode exonerar da linguagem das camadas sociais lanche, terrina, mantilha, palhaço, dança, quimono, aleluia - aportuguesamento de variado estrangeirismo.

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J. Marouzeau escreveu a raiz é o elemento irredutível da palavra obtido por eliminação de todos os elementos secundários de formação, característico de um conceito dado e suscetível de figurar, intacto ou modificado, nas diversas formações que constituem uma família de palavras - e se torna interessantíssimo o parentesco destas. Em grego anemo vale ar, vento, sopro. O latim tem anima, ae, ar, sopro, e animus, i, princípio pensante. De anima e da dissimilação da primeira nasal n em l, alima, dimanaram animal, animalão, animalejo, animalismo, animalista, animalesco, animar, animação, animador, alimária e outros cognatos. Da queda do i átono de alima resultou alma. Uma numerosa família de palavras, como se vê. E de animus, masculino, saíram animismo, animista.

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Entendemos que o ponto fundamental do trabalho de Samuel Guerra seja relacionar, num verbete geral, todas as palavras com ele relacionadas e constitutivas de uma família - justamente aquela família resultante de derivação por prefixos e sufixos. A tal conjunto familiar se ajuntaram outros significados provindos de línguas diferentes, outros aspectos vocabulares, portanto.

Registrando peixe, da raiz latina alterada peix, por exemplo, arrola, sob o mesmo teto, peixada, peixaria, peixeira, peixão, com sufixos vernáculos; e relaciona piscina, piscívoro, psicultura, psicultura, psicultor, adquiridos pela raiz latina psi. Vai além: registra pesca, pescado, pescador, que promanaram da raiz alterada pesc. O pesquisador prossegue, na ânsia do trabalho perfeito, e escreve a forma grega de peixe - ictio, donde se fizeram ictiofagia e ictiófago.

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Samuel Dourado Guerra realizou estudo único, original, culto, autêntico esforço de ciência e paciência. Falta apenas a publicação.


A. Tito Filho, 24/11/1987, Jornal O Dia

NUDEZ CASTIGADA

De todos os lados o sexo se confunde com a paisagem brasileira. A publicidade se faz com mulheres nuas ou seminuas, nádegas descobertas, seios do mesmo jeito, suéteres colados para maior realce de saliências provocantes. A propaganda tem explorado a mais não poder a mulher, na exibição de corpos desnudos, ao lado dos produtos da civilização industrial. Sexualizam-se os sentidos do infeliz homem desse fim de século louco e depravado. Pior: a fêmea pelada da publicidade nenhum aspecto artístico possui - e o nu comercial apenas se presta à mulher do mundo se(m) afeto, - as brigittes, a vedete, a misse disso e daquilo, a garota propaganda, os gênios do canto, da dança clássica, da arte universal ou xuxas das crianças órfãs de pais vivos, e os meninos que com elas se educam; os modelos das pastas de dentes, a intimidade dos beibidóis, as mamas artificiais por baixo de blusinhas transparentes, os biquínis, de chumaço, os forros dos traseiros ou bumbuns descobertos na televisão - processos em evidência de que se utiliza a propaganda para a corrupção da sociedade brasileira e contra a qual devem reagir a família e a escola e as instituições sociais - uma reação que se faça contra a publicidade nociva no lar e na rua, educando-se a coletividade para a vida sexual sadia e digna.

Iniciou-se a nudez feminina no Brasil na tristíssima década de 60, com o famoso striptease, ou desnudamento paulatino, peça por peça, nas casas de diversões, cabarés, ambientes de meretrício, - desnudamento acompanhado de música erótica para incitar apetites STRIP vale despir, tease é o que importuna ou aflige; o composto quer dizer despir o que enfada, ficar nu ou nua.

Depois seria o topless, ou seja, menos (less) no cimo, no cume (top): seios desnudos, balançando, sem sutiã, nas praias, nas ruas. Adiante, o pelado integral, completo, sem a proteção do próprio triângulo peluginoso, como em alguns pontos das praias turísticas deste Brasil desavergonhado. E elas, nuas, convidam os machacás para o amor - e estes apenas as olham, desvontadosos, empanturrados de tanto sexo à mostra, as cousas boas fora dos esconderijos. E recusam o banquete carnal, mandando que elas tenham mais pudor. Mais uma vez a nudez recebe o merecido castigo.


A. Tito Filho, 23/10/1987, Jornal O Dia

VÍCIO REPUBLICANO

Diz-se que no Império houve Parlamentarismo. Talvez fosse possível a referência a um Parlamentarismo caboclo, pois o Ministério não dependia do Parlamento. Os ministros eram de livre nomeação e demissão do imperador, merecessem ou não a confiança das câmaras. Mas na época imperial existia um freio moralizante: membro do Congresso, deputado ou senador, que aceitasse o cargo de ministro, perdia o mandato, e a circunstância o exonerava de, como parlamentar, de submeter-se a ordens monárquicas e cumpri-las, retirando-se-lhe a independência de membro do Poder Legislativo.

Não se ignora que Locke inspirou Montesquieu e este expôs em obra célebre a separação dos três poderes do Governo. Tal modelo guiou os convencionais de Filadélfia, que votaram a carta constitucional dos Estados Unidos, em que os entendidos encontram erradamente a base do sistema presidencialista.

Atribuem os desavisados a Rui Barbosa a Constituição brasileira de 1891. Nunca. Ela foi orientada e comandada pelos positivistas, advogados de Governo ditatorial, como sucedeu. Promulgou-se a hipertrofia do Poder Executivo - e desta hipertrofia, na República Velha, na República Getuliana, na República pós-Getúlio, na República Militar de 1964 e na atual desgastada e surrada República Nova, resultaram e continuam resultando abusos e intranqüilidade. Os positivistas, que talvez nunca tenham lido a Constituição dos Estados Unidos, ou porque, de propósito, recusassem os seus princípios, fizeram do chamado presidencialismo no Brasil uma ditadura forte e sem contraste, um vício republicano. Na América do Norte distribuiu-se a competência dos poderes e garantiram-se o equilíbrio e a coordenação entre as suas prerrogativas pela teoria dos pesos e contrapesos. Existe mútua fiscalização: um poder serve de freio e controle ao outro. Vigora em Tio Sam um Governo congressional, com supremacia do Senado. Nem a Corte Suprema escapa ao Congresso. Recorde-se o fato de que Wilson assinou o tratado de paz de 1918 em que se criou a Liga das Nações, por proposta do próprio presidente. O Congresso desaprovou a participação do País nesse organismo internacional - e Wilson viu-se derrotado. A nomeação dos secretários (ministros) pelo presidente da República, na terra de Roosevelt, depende de homologação do Senado. Recentemente, no Brasil, mais uma vez, parlamentares passaram a ministros, sem que perdessem o mandato, e mais uma vez se invadiu o outro poder. No caso os partidos políticos e o Congresso mais se submetem ao mandonismo presidencial, ferindo-se a independência dos poderes e os fundamentos cívicos das agremiações políticas.

Existe velho e rancento vício republicano sempre em voga: os privilégios ditatoriais do presidente da República, com a solidariedade do Poder Legislativo.


A. Tito Filho, 28/10/1987, Jornal O Dia

A INDEPENDÊNCIA

Contam que o gorducho Dom João VI, ao deixar o Rio de Janeiro, pediu que o filho Pedro se tornasse o novo rei brasileiro. De Lisboa, porém, despachava o cabo-de-guerra Fidié para o comando das armas em Oeiras, a antiga capital, ordenando-lhe que nestes piauís se mantivesse, a qualquer custo.

Portugal queria o Brasil-Português, constituído de Piauí, Maranhão e Pará. Era a riqueza em gado bovino, sustentadora da côrte e das colônias africanas.

A 19 de outubro de 1822, em Parnaíba, norte da capitania, alguns patriotas, liderados por João Cândido e Simplício Dias, levantaram, segundo Pereira da Costa, o grito da independência e aclamaram Pedro imperador do Brasil. A notícia chegou a Oeiras, sede do governo português, e logo o comandante Fidié seguiu com a tropa armada, uns mil soldados, para sufocar o gesto parnaibano. Os rebeldes, sabedores da aproximação dos lusos, abandonaram a vila e refugiaram-se no Ceará. Não houve combate. Erro imperdoável teria praticado o comandante português, ao abandonar a capital do Piauí.

Aproveitando-se da ausência de Fidié e seus comandantes, Manuel de Sousa Martins, futuro visconde da Parnaíba, a 24 de janeiro de 1823, manhãzinha, proclamou, em Oeiras,a  independência e estabeleceu novo governo com a destituição das autoridades lusitanas.

Até 1937, os piauienses comemoravam a independência a 24 de janeiro. Em 1923, uma semana de solenidades homenageou o primeiro centenário do gesto de Sousa Martins. O historiador Pereira da Costa registrou que, a 31.8.1859, "Lei provincial determina no artigo 24 que o dia 24 de janeiro, aniversário da adesão do Piauí à independência nacional, é feriado em todas as repartições provinciais".

Em Parnaíba, Fidié aquartelou-se e treinou a tropa. Mas era necessário retornar a Oeiras e retomar o governo. A 1º de março de 1823, com mais de mil homens, o chefe marcha (no) rumo de Piracuruca (PI). Deveria alcançar Campo Maior, aonde chegou às margens do rio Jenipapo a 13 do mesmo mês. Aguardavam-no piauienses e outros brasileiros, perto de dois mil homens, comandados por Chaves, Nereu e Alecrim. Vaqueiros e roceiros ocultaram-se no leito seco do rio, entre os arbustos. Deram-se os choques iniciais entre os adversários. Grande perda de vida dos independentes, armados de velhas espingardas, facões, machados e foices. O combate durou das 9 da manhã às 2 da tarde, sob sol escaldante. Vencidos os brasileiros, Fidié não teve condições de perseguí-los. Registra-se que morreram poucos portugueses e cerca de 400 ou mais do outro lado.

Acampando para descanso nos arredores de Campo Maior, exausto, deu-se o furto de armas e munições dos portugueses. Iniciaram-se tropelias contra os vitoriosos. O comandante resolveu seguir para o Estanhado (União-PI) e daí para Caxias (MA), onde, cercado, resistiu, mas acabou vencido e prisioneiro.

Jenipapo foi carnificina pavorosa. A luta no Piauí decidiria a unidade nacional. Achamos, pois, que a verdadeira independência di Brasil se verificou a 13.03.1823, às margens do rio Jenipapo, perto da vila piauiense de Campo Maior. Salvo melhor juízo.

Três as fases do processo político da independência: o gesto inicial e pioneiro dos parnaibanos, depois a habilidade do dono de gado e vaqueiro chamado Manuel de Sousa Martins e por fim a consolidação destes fatos na sangrenta batalha do Jenipapo, a 13.03.1823 - data da verdadeira emancipação do Brasil, com a afirmação da unidade nacional.


A. Tito Filho, 21/10/1987, Jornal O Dia

FENÔMENO ESCLARECIDO

Recente congresso ou cousa que o valha na cidade de Los Angeles, na Califórnia dos Estados Unidos, reuniu milhares de homossexuais masculinos e femininos, mais de mil deles, para discussões de problemas diversos, inclusive os jurídicos, que resultariam de milhares de casamentos entre tipos do mesmo sexo. Dia por dia, não cabe dúvida, mais aumenta o número de invertidos - e no meio destes se encontram indivíduos importantes e obscuros, ricos e pobres, feios e bonitos, religiosos e ateus, sábios e ignorantes. O fenômeno tornou-se universal. Campinas, no Brasil, vale capital brasileira de afeminados. Interessante: raros estudiosos admitem cura para o mal. A verdade - escrevemos faz alguns anos - está em que sociólogos, psicólogos e médicos, generalizadamente, atribuem à mulher a responsabilidade da criação do homossexual masculino. As mães são as grandes responsáveis pela educação dos filhos, e do modo pelo qual criam os rebentos machos nascem, quase sempre, os invertidos. Existem mães que prendem tanto os filhos à barra da saia que tais crianças não podem tornar-se emocional ou sexualmente interessadas em outras mulheres.

O mimo materno feminiliza o menino. Mas a mulher - dissemos com base em autoridades famosas, vai aumentando o número de homossexuais masculinos, desde que se entregaram ao processo de masculinização e com isto levam o homem a fugir do seu artificialismo. O elemento feminino abandonou o lar - passou a policial, a motorista, a líder de movimentos, veste-se masculinamente, apregoa a igualdade dos sexos, os direitos idênticos, abdica dos encantos - materializa-se por conta da famigerada independência econômica e provoca no sexo oposto arrefecimento e decepção.

As moças de hoje copiam atitudes masculinas - fumam, bebem, jogam, o que não acontecia antes da civilização industrial. O industrialismo gigantesco masculinizou a mulher e essa masculinização leva milhões de homens ao homossexualismo, conseqüência maior da poderosa civilização industrial dos nossos tempos. E o fenômeno sapatão? O homossexualismo feminino fia mais fino. São outros quinhentos mil réis.


A. Tito Filho, 20/10/1987, Jornal O Dia

quinta-feira, 23 de junho de 2011

DESAGREGAÇÃO

A última lição jornalística de Alexandre Garcia salienta que não pode continuar a desagregação da família e dos valores mais básicos em que se sustenta a estrutura da nação. As pessoas - diz ele em seguida - se sentem agredidas por uma anormalidade forçada, uma propaganda da anormalidade - a gente anormal e infeliz deseja vingar-se da sua anormalidade e infelicidade espalhando a praga pelo país, a fim de desagregar a nação. De minha parte, faz anos, peço a atenção de líderes, de governos, de instituições, dos professores e educadores, de jornalistas, de chefes de família para o poder industrial, que, por através do dinheiro, sustentando uma opressora máquina de publicidade, corrompe caracteres e convoca o homem e a mulher para o mundo da fantasia, do gozo, do prazer, do ócio. No Brasil conspurcam-se consciências, para a busca do dinheiro fácil que sustente a festa, a festança, a festoca, os embalos, as buates, os motéis, as noitadas, o despudor, - e nesse cenário imenso de perversões morais e espirituais enxameiam antros de perdição e as casinholas dos conjuntos habitacionais em que estudantes pobres e mocinhas desavisadas imitam a classe alta, no vício das drogas e na luxúria sexual.

A indústria produz cada vez mais. Necessita-se dia por dia de muitos mercados consumidores. Convoca-se o brasileiro para a filosofia de comprar e de consumir. Exploram-se vaidades. O dinheiro oferece status, posição prestígio. Ganhar de qualquer forma, pelo meio mais simples. Esqueçam-se responsabilidades com os deserdados, com os que não possuem os bens necessários à vida, embora se aproxime o desespero dos famintos, dos sem-teto, dos sem-oportunidade. Ainda se salva o povo, o povo na sua essência, pois as elites se entregam à dissipação, com as exceções que impõem. A mocidade distanciou-se dos livros. Nada se lê. A novela preenche as necessidades de inteligência e assim penetram os lares, para liquidação de valores.

Desvaloriza-se por mil modos a natureza humana - ensina Alexandre Garcia. Em tudo, o nu, a pornografia, a idiotice, e um país miseravelmente endividado e inculto.


A. Tito Filho, 22/10/1987, Jornal O Dia

MOTEL

Na evolução da casa de tolerância, assim chamado o local de amores escusos, o motel constitui o ponto alto nos dias correntes. Começou-se com o cabaré ou pensão, veio o rendez-vous, depois inaugurou-se a buate (com U mesmo, meu inteligente revisor) e atingiu-se a idade de ouro, o motel, a respeito do que escrevi, no livro que me deu muito trabalho - "Anglo-norteamericanismos no português do Brasil", editado no Rio no ano passado: "Quem percorre as estradas norte-americanas, de vez em quando lê placas indicativas de MOTEL, palavra que hoje se vai internacionalizando. É criação dos Estados Unidos, onde significa hotel para automobilistas, hotel à beira de estrada (Motorist's Hotel). No Brasil vigora a pronúncia oxítona, isto é, a “tonicidade recai na última sílaba tel. Note-se que o plural inglês é Motels, mas no português deve fazer-se o plural Motéis, de acordo com a regra". Motel está assim constituído da primeira sílaba de motorista e da última de hotel, uma hospedaria para motorista nas estradas, depois de cansativa viagem na monotonia dos compridos caminhos asfaltados. Lugar de repouso desses choferes amados das mulheres, da mesma forma que amadas delas são os soldados de polícia e trapezistas de circo. Nos dias atuais outros tipos conquistam as garotas, desta vez da alta-roda: o bandido, o assaltante, o vendedor de droga. Mas o guiador de caminhão e de carreta deu passo à frente: arrecadava quengas nos percursos sem-fim e as levava para os motéis, e com elas agüentava noite de sexo. Daí, pouco a pouco, motel passou a casa de tolerância, e por este modo invadiu as grandes cidades, os centros populacionais graúdos em todo o Brasil - e hoje motel vale a última moda em casa de tolerância neste desastroso século XX. Um luxo.

Apartamentos de marajá indiano, espelhos nas paredes, no tecto, serviços de bebidas e refeição, filmes sexuais escabrosos, e na saída o casal recebe presentinhos de sabonete e pentes de propaganda. Depois do motel, que vai aprender? Automóvel equipado com a macia cama já enfeita a paisagem. Falta agora ou está chegando a última fase da evolução: ruas e praças, de dia e de noite, em leitos, banco ou  grama de praça.


A. Tito Filho, 20/11/1987, Jornal O Dia

AS POBRES VÍTIMAS

Houve muita festa. Trombeteou-se publicidade nacional. O comércio deveria vender brinquedos custosíssimos para os meninos da burguesia dos lucros fabulosos, e a sugada classe média adotaria os carnês na compra a prestação dos mesmos mimos luxentos, na imitação dissipação. Os filhinhos das mães solteiras, dos biscateiros, dos camelôs, dos milhões de salários mínimos, teriam brinquedos de lata seca ou cavalo de pedaço de vara. Muitas instituições fizeram festas dedicadas aos pequenos, distribuindo-se guloseimas e presentinhos consoladores. Houve música e canto. A televisão organizou e ofereceu programas especiais para a garotada, ávida de afeto, e temos impressão de que a grande artista, maravilhosa cantora e dançarina clássica Xuxa, ídolo de uma Nação anestesiada, encantou os milhões de meninotes sem horizonte no recesso dos lares sem divisão sadia e educativa. As ruidosas comemorações oferecidas às crianças no dia 12 de outubro não permitiriam a lembrança do descobrimento da América e da padroeira nacional, N. S. Aparecida. Ainda bem, pois a meninada ignora Cristóvão Colombo e pouco se preocupa com vida espiritual, num mundo materializado e desprovido de solidariedade. A verdade está em que a criança vive entregue à sua própria sorte. A rua simboliza o lar - pois as nossas crianças moram na rua, ou porque não têm lar ou porque apenas conhecem a casa da moradia - a casa e em que os membros da família se encontram para o repouso madrugadino.

Convocada para as conquistas da civilização industrial, a mulher vive hoje nos empregos, e as ricas nos saraus, nas piscinas de ostentação, nos salões de beleza, no esnobismo das festas de caridade, e as miseráveis em busca de esmola para acalento da barriga e o resultado se vê no abandono dos filhos pequenos, que se criam sem carinho e sem afeto, e aos quais, na grande maioria, se recusam os peitos maternos, fonte de amor e de ternura. O recurso encontrado para subir a missão da família, ora desintegrada, encontra-se na escola, também despreparada para graves responsabilidades educacionais. Não há crianças ruins. Existem crianças mimadas e escorraçadas. A 12 de outubro, nada se verificou na sociedade, em qualquer das suas camadas, que procurasse estudar o problema das incontáveis vítimas do poder industrial ou da própria perversa organização social - o problema dos pais que entregam os filhos à própria sorte, na alta burguesia e na classe média, e  a situação da família paupérrima, sem os mínimos bens da vida - cujos meninos a gente ama, com profundo amor, como Jorge amado, pois são os pequenos vagabundos, ladrões de onze anos, assaltante infantis que os pais tiveram de abandonar por não ter como alimentá-los. No mês de outubro, duas entidades estudaram problemas ligados à infância: a Academia Piauiense de Letras e a Academia de Letras da Bahia. No mais, a rotina do mundo-cão.


A. Tito Filho, 19/10/1987, Jornal O Dia

O PIAUÍ E A REPÚBLICA

David Caldas, nascido na terra piauiense de Barras, seria chamado o profeta da República, pois muitos anos antes da proclamação do novo regime brasileiro, esse combativo homem de imprensa, ardoroso antimonarquista, admitiu que o advento republicano se daria justamente no ano em que ocorreu, em 1889. Poucos recordam o bravo jornalista, desassombrado que muito sofreu pela virtude de ter e de defender idéias. Sabe-se que os acontecimentos da história sempre promanam de sérias causas econômicas e dos erros imperdoáveis que os próprios homens cometem. Não houvesse o gesto magnânimo de Isabel e o Trono teria permanecido no Brasil. A máquina aboliu a escravatura e a abolição desta retirou da família imperial brasileira o apoio dos latifundiários e a monarquia ruiu como um castelo de cartas. Mas existem as causas primeiras e as derradeiras e, no meio destas últimas, os acontecimentos de precipitação. Anfrísio Fialho, ferrenho republicano, nascido no Piauí, que o elegeu deputado federal para participar da primeira Constituinte, escreveu "História da Fundação da República no Brasil", em cuja página 29 escreveu: "O coronel Cunha Matos, que havia sido encarregado de inspecionar uma companhia de infantaria estacionada numa das províncias do império, no relatório que apresentou ao ministro da Guerra, fez graves acusações ao comando daquela companhia, o qual era amigo do peito de um deputado". E logo a seguir acrescentou: "Tomando as dores pelo comandante da companhia, o deputado, em vez de limitar-se a defender o seu inimigo, injuria atrozmente, do alto da tribuna parlamentar, ao coronel Cunha Matos, chamando-o de traidor e covarde".

Anfrísio Fialho, republicano, escondeu o nome do Simplício Coelho de Resende, incondicional partidário de Pedro II, e não esclareceu convenientemente os fatos. Simplício nasceu em Piripiri, município piauiense. Jornalista impetuoso e valente. Um dos empolgantes episódios de sua vida pública está no envolvimento da chamada questão militar, formada de circunstâncias diversas relacionadas com a disciplina. Pedro Calmon atribuiu ao parlamentar do Piauí participação direta como fator relevante na fundação da República. Realmente, Simplício rebateu as acusações de Cunha Matos contra o capitão Pedro José de Lima, que teria praticado supostas irregularidades no comando de uma Companhia de Infantaria no Piauí. O parlamentar atacou violentamente o denunciante, transformando-se o assunto em grave caso político. Cunha Matos defendeu-se pela imprensa. Foi preso. Várias ocorrências se verificaram com a participação de civis e militares. Precipitou-se a proclamação da República. Recorde-se que Simplício Coelho de Resende era de caráter forte e extremamente corajoso de atitudes.


A. Tito Filho, 21/11/1987, Jornal O Dia

ÉDIPO

A lenda de Édipo pertence à mitologia grega. Aconteceu que Laio, rei de Tebas, desposou Jocasta, e do casal nasceu Édipo. Quando se casou, Laio teve a curiosidade de consultar os oráculos - que dizem a vontade dos deuses e davam a conhecer o futuro dos consulentes. Pois o oráculo manifestou a Laio que o filho que dele nascesse lhe causaria a morte. Jocasta deu à luz e o marido mandou que se sumisse o menino, mas o encarregado da missão, como na Branca de Neve, limitou-se a suspendê-lo numa árvore, de onde um pastor o conduziu à rainha de Corinto, que o adotou e cuidou de sua educação. Homem feito, herói consultou o oráculo e a resposta veio: seria o assassino do pai e marido da própria mãe. Para evitar que a predição de tornasse real, exilou-se, guiando-se pelos astros. No caminho, encontrou Laio - e cada qual se recusou a ceder ao outro passagem na estrada estreita. Lutaram e Laio foi morto. Chegando a Tebas, Édipo encontrou a cidade em pânico. A esfinge, monstro horrível, atirava-se sobre as pessoas e propunha-lhes enigmas, matando os que não os decifrassem. Um deles era este: qual o animal que de manhã tem quatro pés, dois ao meio-dia e três de tarde? Creon, irmão de Jocasta, que assumiria o Governo com a morte do cunhado, garantiu que dava a mão da irmã e a coroa ao que livrasse Tebas do triste tributo que se pagava ao monstro. Édipo apresentou-se e teve boa sorte de decifrar o mistério: o animal era o homem, que na infância se arrasta sobre os pés e as mãos; ao meio dia, na maturidade, só necessita de duas pernas; à tarde, na velhice, usa bastão, como se fosse terceira perna. A Esfinge, furiosa, por se ver decifrada, atirou-se a um precipício e morreu. Jocasta tornou-se mulher de Édipo e tiveram dois filhos e duas filhas. Anos depois, o reino foi devastado por cruel peste. O oráculo declarou que os tebanos recebiam o castigo porque não vingaram a morte de seu rei Laio, e Édipo ordenou pesquisas. Pouco a pouco se descobria que o novo rei era parricida e incestuoso. Jocasta suicida-se. Édipo arranca os próprios olhos e afasta-se de Tebas, conduzido por sua filha Antígona, que não o abandona na desgraça. Teseu os amparou em Atenas. Creon quis que ele retornasse a Tebas, mas o príncipe infeliz rejeita o convite, temendo que o cunhado quisesse afastá-lo dos atenienses. Édipo morreu na presença de Teseu, sem violência e sem dor.

Esta a história que li em Commellin e que praticamente transcrevi. Sófocles, numa tragédia imortal, para melhor inspirar o terror e a piedade, acrescentou outros episódios à lenda. Homero diz que Édipo casou com a mãe Jocasta, mas não houve filhos do casamento. Jocasta matou-se assim que se reconheceu incestuosa. Diz-se mais que o herói casou segunda vez, com Eurigaméia, com quem reinou em Tebas, onde faleceu.

Agora Dias Gomes revive Édipo numa novela, uma novela com copos de uísque, negócios escusos, revólveres, comunismo, maternidade, e o Laio de cocó. Ao lado, muito adultério.

Sófocles, inteligência de raça, observa certa atenção que as crianças demonstram pelos genitores do sexo oposto. As fêmeas gostam dos pais, os machos das mães. Depois foi a vez de Freud ao positivar a autocastração simbólica na peça de Sófocles. Édipo mutila-se para nunca mais realizar o ato sexual. Nasceu o complexo de Édipo. As pessoas que primeiro convivem com as crianças deixam nelas recordações. Ninguém se liberta dessa influência psicológica. Quando adultos, assumem atitudes paradoxais e têm necessidade de libertação. Se não conseguem, tornam-se nevrosados.


A. Tito Filho, 26/11/1987, Jornal O Dia

MALANDRAGEM NACIONAL

O índio era colhedor. Para comer, matava o animal, ou apanhava o fruto da árvore. Não criava, não plantava. O colonizador português representava a fina flor dos homens sem caráter, condenados, remetidos ao Brasil pelo governo e que aqui buscava a riqueza fácil. Desafeitos ao trabalho, os novos donos da terra trouxeram o negro africano e a este atribuíram as tarefas agrícolas. Depois de alguns anos, entupidos de cruzados, voltavam ao reino, deixando na colônia a filharada do cruzamento com as mulheres indígenas ou com as pretas da Guiné, safadeza que os padres censuraram, embora também cruzassem.

Mafrense ganhou de mão beijada sesmarias, léguas e léguas de terras no Piauí, em que penetrou com as reses da Casa dos Ávilas e fundou o império do gado, no sertão profundo, matou os selvagens, homens, crianças, fetos, regressou à Bahia, rico a mais não poder e, no leito de morte, encarregou os jesuítas da administração de suas 39 fazendas de pé-duro.

O carnaval brasileiro, herança do avô Portugal de bumbas, zabumbas e danças de zé-pereira e remelexos africanos, se realizava nos dias de 3ª feira, chamado entrudo. Depois também aos domingos, em seguida acrescentou-se a segunda-feira. Durante muito tempo havia o tríduo de Momo. Introduziu-se o sábado. Adiante, intrometeu-se a 6ª feira. Agora começa 5ª e prossegue até a 4ª de cinzas, ou mais, como em Olinda. A pândega acarreta prejuízos sem conta à família e à sociedade. Generaliza-se a descompostura nacional e a festa dos complexados contagia o país em todos os sentidos. A imbecilidade não tem fronteiras.

A última criação nacional está nos dias de ócio prolongados até 2ª feira.

O operário trabalhava desde que o sol nascia até de noite. As lojas antigamente recebiam fregueses depois das 20 horas. Mal se fechavam nos dias dominicais. Deu-se a luta pelas 8 horas diárias de trabalho, do começo ao fim da semana. Getúlio Vargas concedeu mais aos trabalhadores das empresas privadas a folga do sábado de tarde. Mas como pobre vive de teimoso, esse tipo de gente só goza feriadão quando acontece feriado nacional após o domingo. Nunca lhe dão ponto facultativo.

Funcionário público, não. A sua história começou ontem. Trabalhava de 2ª a sábado. Concedeu-se-lhe a semana inglesa. Ranieri Mazzili, numa de suas assunções presidenciais, decretou feriado administrativo o sábado. Se o servidor arrumava as gavetas na manhã da véspera do domingo, passou a arrumá-las na sexta-feira. Quem quiser audiência com barnabé ou alto titular, deve procurá-lo até o meio-dia da véspera das compridas folgas.

Neste outubro de 1987, houve feriado a 12 para operários e burocratas, a 19 para funcionários públicos do Piauí, a 26 para a mesma numerosa e distinta classe de todos os setores de governo e no próximo dia 2 de novembro ocorrerá mais um feriadão tipo ponto facultativo - novamente as rodoviárias conduzem resmas de tolos úteis para as viagens turísticas nas praias e nas feiras ou rotineiras cidades-mortas do interior brasileiro.

Viajar no aproveitamento de feriadões da status, rodilha na cabeça, espécie de turbante, sacola de mudas de roupa, sanduíche no percurso, cara alegre, a modo de quem está feliz e desapertado.

Não tem remédio a malandragem nacional.

Trabalho se reserva aos idiotas.


A. Tito Filho, 31/10/1987, Jornal O Dia

quarta-feira, 22 de junho de 2011

O VELHO GUERREIRO

Era comum naquela época que os piauienses andassem por muitos lugares, para estudos ou trabalho. Uma temporada aqui, outra acolá. As esposas davam à luz meninos de origem piauiense noutras localidades. Assim, pessoas nossas nasceram em paisagens brasileiras próximas ou distantes, como Ernesto Batista, no Recife, Robert de Carvalho, em Caxias, e Eurípedes de Aguiar, em Matões, estas duas últimas no Maranhão. Nasceria em Barra do Rio Grande, na Bahia, Salmon Lustosa, uma vez que corrente, onde viviam os pais, não possuía médico.

Dos citados, Eurípedes de Aguiar governou o Piauí, em período de vacas magras, de 1916 a 1920, depois de uma seca danada, que a história registrou, a de 15, de cujas misérias Rachel de Queiroz fez romance famoso e real. O objetivo do governante esteve no saneamento das finanças. E conseguiu. Passou a administração, sem nada dever, inclusive ao funcionalismo.

Foi Eurípedes prefeito e parlamentar federal, como deputado e senador. Médico, obteve prêmio de viagem à Europa. Com a vitoriosa revolução de 1930, que levou Getúlio Vargas ao Palácio do Catete, em que, numa manhã sem graça, se matou de bala no peito, o piauiense do Maranhão deixou o tablado político e recolheu-se ao lar. Farmacêutico e doutor em Medicina, trabalhava nas duas profissões, sem querer paga dos serviços.

Conhecia-o de nome. Quando rebentou a liberdade de imprensa, em 1945, depois de violenta ditadura. Eurípedes assumiu postura de vanguarda na direção do movimento oposicionista ao Governo de Leônidas Melo. Mantinha coluna assinada no Jornal "O Piauí", que circulava nos dias de quinta-feira e domingo. Não aceitou candidatura a nenhum cargo eletivo, porque - explicava - seria eleito. Na verdade, as oposições elegeram os senadores, a maioria dos deputados federais e o brigadeiro Eduardo Gomes venceu para a Presidência da República, embora na soma geral dos votos nacionais a vitória coubesse ao general Dutra.

Eurípedes não esmoreceu. Com os companheiros, sustentou mais forte a luta. Tinha firme trincheira no jornal. Tornaram-se popularíssimos os seus comentários, numa linguagem ao alcance de todas as inteligências. Discípulo dos mestres franceses da ironia e do remoque, o articulista aplaudido conhecia a fraqueza interior dos adversários e os expunha ao riso coletivo, tanto os mitos fabricados pela propaganda estatal, como os nobres de fancaria. Pôs a nu sem injurias ou perversidade políticos fortes, valido das armas do sarcasmo e da galhofa - justamente aquele sal do espírito que eternizou o insuperável Rabelais.

Vindo do Rio de Janeiro, depois de cinco longos anos de saudade do amorável xodó de nome Teresina, conheci pessoalmente Eurípedes de Aguiar no dia de meu regresso, manhãzinha. Cheguei numa gaiola do Parnaíba, depois de longa viagem. Era 19 de janeiro de 1947, dia em que o povo comparecia nas urnas para eleger governador Rocha Furtado, da antiga e extinta UDN, mesmo dia em que o chefão corajoso e comandante da vitória estava de aniversário natalício. Andava ele aí por perto dos setenta janeiros. Da beira do Parnaíba caminhei até a casa da avenida Antonino Freire - e ali abracei o velho guerreiro - herói autentico do seu tempo, sempre de amplo sorriso na fisionomia tranqüila. Pois foi aí nesse prédio que guarda o espírito de um homem digno, sob os cuidados do amor filial de Genuzinha Aguiar Correia, que se deu o lançamento do livro "O Rio Mágico", de Renato Castelo Branco, nos últimos dias do falecido mês de novembro de 1987, Depois eu conto.


A. Tito Filho, 20/12/1987, Jornal O Dia

EVOLUÇÃO

A rua Paissandu era, até bem pouco tempo, o nome de batismo da zona do meretrício, embora esta ocupasse pequeno trecho da citada via pública. Bom recordar um pouco. À beira do Parnaíba mariposas exploravam embarcadiços de gaiolas, lanchas e barcas. Nesses descaminhos antigos existiam alguns famosos cabarés também ditos pensões: o da Raimundinha Leite, o da cabloca Gerusa e o da Rosa Banco. Todos tinham orquestras e muito se dançava com as horizontais. Havia movimentado serviço de bebidas. As raparigas, no mau sentido, recebiam os fregueses em quartos bem arrumados, de cama e penteadeira. Depois do ato, o pagamento. Os quebrados enrolavam, passavam chumbo e tomavam descompostura. As mariposas residiam no próprio cabaré e aí tinham as refeições. Pagavam diária à cafetina dona do açougue. Algumas possuíam amigação, ou seja, o macho do amor exclusivo. No carnaval as meninas se fantasiavam ricamente e participavam do corso, ou desfile de veículos pelas vias públicas previamente indicadas. Os caminhões das garotas eram os mais bonitos e mais aplaudidos. Nos cabarés teresinenses misturavam-se estudantes, comerciários, professores, magistrados, servidores públicos, comerciantes, militares, pobres e ricos, todos nivelados na busca do sexo. Chegaria a fase da buate, a partir da década de 60 - inferninhos de luz muito fraca, uma semi-escuridão, em que casaizinhos pintavam o sete em matéria de primícias e até de últimas considerações entre os dois bens escondidos na quase trevosa sala. Recorde-se que a zona da Paissandu oferecia inúmeros freges, botecos e restaurantes de panelada. Teve começo a decadência. Fecharam-se os notáveis bordéis dos velhos dias. Mulheres feias, desgrenhadas, começaram a habitar os cabarés já agora sem conforto e sem higiene. Garotas bonitas do Ceará e do Maranhão deixaram de fazer a vida em Teresina. As mulheres já não conseguiram pagamento e trocavam o sexo por uma refeição madrugadina. O cabaré desapareceu da paisagem. Chegou a vez da buate (buate com U mesmo, meu caro revisor). Também o rendez-vous que enfeitou a vida teresinense - o rendez-vous que mais acolhia homens e mulheres, gente de outros parceiros, fazendo adultério. Chegaria a vez do motel, mas a estória do motel é outra estória, como a ressurreição da camisinha e a espantosa ameaça da AIDS.


A. Tito Filho, 19/11/1987, Jornal O Dia

AS ACADEMIAS

Os grandes poetas de frança, nos últimos tempos do século XVI, costumavam reunir-se, a fim de que discutissem literatura e outros temas. Suspensos esses encontros por razões de guerra, no princípio do século seguinte a intelectualidade mais projetada retorna às reuniões - Corneille, Bossuet, La Rouchefoucald e outros. Em 1635 constitui-se uma associação e Richelieu a oficializa dando-lhe a prerrogativa de reguladora da língua francesa e guarda das suas tradições. Concedeu-lhe o cardeal privilégios. Nascia a Academia Francesa, matriz de muitas que se foram criando com o passar dos anos. Atacada duramente, resistiu às mais impenitentes censuras. Desprezou-se a Lesage. Culparam-na da decadência da literatura. Diziam-na alguns própria das mediocridades felizes. Manteve-se serena e forte, alheia aos apedrejamentos.

Outras instituições surgiram na Europa, como a Arcádia Romana, a Academia dos Confinados de Pavia, dos Declarados em Sena, dos Elevados em Ferrara, dos Inflamados em Pádua, dos Unidos em Veneza, dos Generosos e dos Singulares em Portugal - para citar algumas que pude colher em publicações diversas.

Na terra lusitana, no avôzinho Portugal, fundaram-se a Academia Ulissiponense, a Academia das Ciências, ainda hoje de grande prestígio nos domínios da vida intelectual portuguesa, a Nova Arcádia.

O Brasil teve, na Bahia, a Academia dos Esquecidos, a Academia dos Felizes, a dos Seletos e a dos Renascidos. No Rio de Janeiro, apareceria a Arcádia Ultramarina em 1770.

Criou-se a Academia Brasileira de Letras e cada Estado da Federação criou a sua, pelo modelo da Francesa e da Brasileira. Chegaria a vez das academias regionais e municipais, e neste ponto o Brasil hoje está rico numericamente de entidades acadêmicas por dezenas e dezenas de municípios. Além da Piauiense, o Piauí, já conta com mais três. É bom que assim seja, para que se intensifique a atividade intelectual, uma vez que, esses centros constituem incentivo a quantos aspirem a um lugar ao sol na vida da inteligência das coletividades.

De todas essas organizações culturais, a mais famosa sempre foi a celebérrima Academia Francesa, de propósitos tradicionais, guardiã de bom estilo, na verdade um grêmio literário nobre e do mais alto acatamento.

Os incautos ou desconhecedores dos objetivos verdadeiros das Academias pensam que nelas só devem assentar-se poetas, teatrólogos, ficcionistas. Puro e ledo engano. As Academias que se prezam convocam para as suas atividades todos os que podem concorrer para o aperfeiçoamento espiritual do homem.


A. Tito Filho, 19/12/1987, Jornal O Dia

ÚLTIMA VEZ O NU

Deus colocou o homem no jardim do paraíso. Achou que não era bom que o homem estivesse só. Fez cair pesado sono sobre ele, tomou uma de suas costelas e transformou-a numa mulher. Entregou a varoa ao varão, ambos nus e vergonha não sentiam. Como se vê, o nu dessas criaturas vem das raízes bíblicas. Mas a serpente sagaz fez que Eva comesse o fruto proibido e ela deu-o também ao marido e ele também comeu. Abriram-se os olhos de ambos e, percebendo que estavam nus, cobriam-se de folhas de figueira. E por aí se contam os fatos.

Deus os fez nus e eles se envergonharam e esconderam os possuídos da forma mais simples que foi possível, depois da comilança da maçã.

Os séculos se foram, na vertiginosa passagem dos anos. Cada dia homem e mulher mais se metiam debaixo de pesadas roupas. Chegaria ao mundo a civilização dos norte-americanos, que instituíram a produção em massa de produtos industriais e necessariamente deveriam criar nos dois sexos a filosofia da compra, ou processo civilizatório do consumismo. Criaram-se anúncios comerciais por através de um processo de condicionamento de reflexos. Revistas, jornais, cinema, cartazes, televisão, envoltório dos mais diversos objetos - de sabonetes,de rádio, de pente, de perfume, de pó-de-arroz, de brilhantina, de loção de alpercata, - tudo começou a estampar mulheres quase nuas, nádegas descobertas, por trás fio-dental, seios perfumantes ou balançando com o topless, suéters colados para maior realce de pontos e lugares e saliências provocantes de sensibilidade. Peças íntimas cada vez mais reduzidas expunham-se em vitrinas. Realçava-se a esbelteza do busto à custa de acolchoamentos. O método mais certo de atrair fregueses para a filosofia da compra esteve na exibição de corpos femininos desnudos, ao lado dos produtos anunciados. Em tudo a sexualização dos sentidos. Estebeleceram-se os concursos de misses, - as misses de remelexos lascivos para a cupidez das platéias estrondeantes em palmas demoradas para exaltação da carne. Simplesmente o nu da propaganda, sem aspecto artístico de espécie alguma. Não se tratava de um nu de Ticiano, mas do nu comercial, convocativo. Cada hora que passava a mulher perdia roupa até que chegou ao peladíssimo total e constante nas buates, nas praias, nas ruas - e a gente já cansou de ver tanta fêmea despida que o feitiço virou contra a feiticeira. As revistas de nu total e sexo explicito estão sobrando e os editores já apelam para o sexo mulher versus animal. Uma estupidez este fim de século XX. Se o escrivão de Pedro Álvares Cabral chegasse hoje ao Brasil, escreveria ao rei dando a notícia do descobrimento: "Ali andavam entre três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olhamos, não se envergonhavam".

Alguns idiotas pensam que o nu é progresso e mostra a beleza feminina - mas os idiotas jamais aplaudiriam que suas respeitáveis mães, esposas e filhas desfilassem nuinhas em pêlo pelas praias, pelas ruas, pelos becos de folia momesca ou freqüentassem os motéis luxentos e luxuriantes de camas giratórias. Nu é bonito e bom na mãe do distinto amigo, na esposa do próximo, na filha de alheios pais.


A. Tito Filho, 18/12/1987, Jornal O Dia

terça-feira, 21 de junho de 2011

FUTEBOL

Em 1960, fui chefão do futebol no Piauí, interventor federal na Federação Piauiense de Futebol, armado de poderes ditatoriais. Havia em Teresina uns dez clubes, fora os do interior, Campo Maior e Floriano, se a memória está lembrada. Jogava-se no estádio Lindolfo Monteiro. Certos jogos não rendiam ao menos para o pagamento dos garotos apanhadores da bola saída de campo, os gandulas. Deliberei reduzir as agremiações teresinenses a seis, escolhendo aquelas da simpatia pública. E assim fiz. Os donos dos grêmios cassados, a bem do esporte, muito me ameaçaram de morte, mas nada me aconteceu. Ainda não chegara o tempo dessas vendetas, tão comuns neste fim de século.

Os clubes de futebol organizados recebiam subvenção mais ou menos gorda, anualmente, do Governo Federal, e nisto residia o motivo de entidades de todos os feitios, até de aleijados. E Teresina tem sido, ao longo do tempo assim: quando se inventa uma modalidade de ganhar dinheiro, dezenas e dezenas de idênticos estabelecimentos povoam a capital. Os proprietários de funerárias disputam de revólver em punho defunto pobre e rico. Há churrascarias por todos os cantos, como santo e negro na Bahia. Uma verdadeira praga de butiques. Motel dá na canela. Em cada esquina uma farmácia. Botecos são centenas.

Em 1918 fundou-se o primeiro clube de futebol na capital do Piauí, com o pomposo nome de TERESINENSE ATLÉTICO CLUBE, justamente o introdutor desse jogo entre nós - e como só existia uma entidade deu-se a disputa do primeiro jogo entre dois times da mesma sociedade esportiva, um chamado CORISCO e o outro PALMEIRAS, aquele constituído dos craques André (goleiro), Bastos e Abreu (beques), Wady, Artur e Curi (médios) e os atacantes Ferro, Mundico, Lourival, Álvaro e Sady. A outra formava-se com os jogadores Gonçalo, Jinvinha e Viana, Paulo, Emílio e Rubim, Medeiros, Pompom, Martins, Henrique e Gerson, - com a mesma distribuição de posições do anterior. Desses 22 heróis não sei dizer se existe algum vivo nem me lembro dos que cheguei a conhecer, salvo um dos beques do CORISCO, José Auto de Abreu, falecido antes dos anos 80, intelectual e político.

Depois da fundação do Teresinense Atlético Clube, surgiram, entre 1918 e 1920, mais as seguintes organizações futebolísticas:

  • Militar Esporte
  • Fundição Esporte Clube
  • Tipográfico Esporte Clube
  • Clube Republicano de Futebol
  • Artífice Esporte Clube
  • América Esporte Clube
  • Piauí Esporte Clube
  • Comércio Esporte Clube
  • Belga Esporte Clube
e outros talvez cujos registros não me foi possível encontrar.

Quanta cousa em Teresina padece a saturação, naturalmente. A cidade torna-se farta, cheia de cousas do mesmo - clubes de alta-roda para exibição de vestidos das madamas, com recepções regadas a uísque, bolinhos para arrotos escondidos e cigarros de matar lentamente; pontos de táxi; jornais e revistas sebosos da Praça Pedro II; teatro de qualquer jeito no velho 4 de Setembro; estupro de garotas já bem sovadas de sexo e mais que se veja e anote para a monotonia da vida sem grandeza.

O futebol, como o carnaval, chegará ao ponto de saturação, como eu escrevi nos idos de 1975.


A. Tito Filho, 23/12/1987, Jornal O Dia