Quer ler este texto em PDF?

quinta-feira, 23 de junho de 2011

AS POBRES VÍTIMAS

Houve muita festa. Trombeteou-se publicidade nacional. O comércio deveria vender brinquedos custosíssimos para os meninos da burguesia dos lucros fabulosos, e a sugada classe média adotaria os carnês na compra a prestação dos mesmos mimos luxentos, na imitação dissipação. Os filhinhos das mães solteiras, dos biscateiros, dos camelôs, dos milhões de salários mínimos, teriam brinquedos de lata seca ou cavalo de pedaço de vara. Muitas instituições fizeram festas dedicadas aos pequenos, distribuindo-se guloseimas e presentinhos consoladores. Houve música e canto. A televisão organizou e ofereceu programas especiais para a garotada, ávida de afeto, e temos impressão de que a grande artista, maravilhosa cantora e dançarina clássica Xuxa, ídolo de uma Nação anestesiada, encantou os milhões de meninotes sem horizonte no recesso dos lares sem divisão sadia e educativa. As ruidosas comemorações oferecidas às crianças no dia 12 de outubro não permitiriam a lembrança do descobrimento da América e da padroeira nacional, N. S. Aparecida. Ainda bem, pois a meninada ignora Cristóvão Colombo e pouco se preocupa com vida espiritual, num mundo materializado e desprovido de solidariedade. A verdade está em que a criança vive entregue à sua própria sorte. A rua simboliza o lar - pois as nossas crianças moram na rua, ou porque não têm lar ou porque apenas conhecem a casa da moradia - a casa e em que os membros da família se encontram para o repouso madrugadino.

Convocada para as conquistas da civilização industrial, a mulher vive hoje nos empregos, e as ricas nos saraus, nas piscinas de ostentação, nos salões de beleza, no esnobismo das festas de caridade, e as miseráveis em busca de esmola para acalento da barriga e o resultado se vê no abandono dos filhos pequenos, que se criam sem carinho e sem afeto, e aos quais, na grande maioria, se recusam os peitos maternos, fonte de amor e de ternura. O recurso encontrado para subir a missão da família, ora desintegrada, encontra-se na escola, também despreparada para graves responsabilidades educacionais. Não há crianças ruins. Existem crianças mimadas e escorraçadas. A 12 de outubro, nada se verificou na sociedade, em qualquer das suas camadas, que procurasse estudar o problema das incontáveis vítimas do poder industrial ou da própria perversa organização social - o problema dos pais que entregam os filhos à própria sorte, na alta burguesia e na classe média, e  a situação da família paupérrima, sem os mínimos bens da vida - cujos meninos a gente ama, com profundo amor, como Jorge amado, pois são os pequenos vagabundos, ladrões de onze anos, assaltante infantis que os pais tiveram de abandonar por não ter como alimentá-los. No mês de outubro, duas entidades estudaram problemas ligados à infância: a Academia Piauiense de Letras e a Academia de Letras da Bahia. No mais, a rotina do mundo-cão.


A. Tito Filho, 19/10/1987, Jornal O Dia

Nenhum comentário:

Postar um comentário