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quinta-feira, 12 de maio de 2011

CONSCIÊNCIA DE CULTURA

Hoje, dia 5 de novembro, a lei determina que se comemore o Dia da Cultura, em homenagem ao nascimento de Rui Barbosa, em 1849. Os modernos estudiosos consideram cultura como o conjunto dos processos de vida de um povo - a língua, a religião, a dança, a música, a literatura, a higiene, a casa, o templo, a alimentação, o conhecimento cientifico, as idéias políticas, as crendices - tudo o que faz o comportamento social, os hábitos, os costumes, as gradações de conduta, não se excluindo o patrimônio arquitetônico sob preservação da própria sociedade organizada, do que resultam os tombamentos tão do gosto dos tempos modernos.

Tombar diz o mesmo que cair, derribar, baixar e outros tipos de ação, mas há outro verbo Tombar, que segundo os entendidos, se tira da famosa Torre do Tombo, de Portugal, onde se guardam arquivos valiosos da história. E neste caso significa arrolar, registrar e também, como inscreve Aurélio, colocam "o Estado sob sua guarda para os conservar e proteger bens móveis e imóveis cuja conservação proteção seja do interesse público, por seu valor arquipélago, ou etnográfico, ou bibliográfico, ou artístico".

Outros valores possuem os bens que devem ser tombados - o social, o político, o arquitetônico, o histórico.

No Brasil, a paisagem cultural dos bens imóveis durante anos esteve desprezada. A praia de Copacabana, no Rio, perdeu o lirismo de anos anteriores, quando a orla marítima era acompanhada de elegantes e bonitas casas de pavimento térreo e superior. Derribaram-se na mesma cidade o Tabuleiro da Baiana, pitoresco e cheio de novidades. Liquidou-se a tradicional Galeria Cruzeiro, ponto de encontro dos políticos. O Palácio Monroe, de elegantes linhas arquitetônicas, foi ao chão. Desapareceu o Palacete Hotel, famosa hospedaria de deputados, senadores e governantes das áreas federadas. E assim por diante. São Paulo tornou-se irreconhecível. A gostosa Belo Horizonte passou a cidade maltratada. Que dizer do Recife? De Fortaleza? Todos perderam o seu feitio em favor de um discutível progresso dito urbanístico e que serve a capciosos interesses de proprietários de terrenos.

Teresina figura mais um exemplo. Para a construção de hotel, Leônidas Melo destruiu o prédio do primeiro Tribunal de Justiça. A velha cadeia deu lugar ao ginásio coberto chamado Verdão. Nada ficou dos primeiros tempos de Teresina. Liquidou-se o Café Avenida - hoje o local de estacionamento de um hotel privado. Já se deformou a antiga residência, de arquitetura tradicional da cidade, que pertenceu a Anfrodísio Tomás de Oliveira. Da encantadora pracinha Pedro II resta o retrato permanente do pecado, na insolência do homossexualismo e da raparigagem farta. Que é da antiga Associação Comercial, de paredes externas de azulejo? Que é do mercadão, que o prefeito Agenor Almeida aumentou, tirando-lhe o aspecto dos primeiros dias, logo depois de fundada Teresina? A memória da cidade desconhece interesses personalisticos. Deve ter base numa consciência de cultura.
 

A. Tito Filho, 05/11/1987, Jornal O Dia

sexta-feira, 6 de maio de 2011

DEFUNTA E RAINHA

Gosto de ler essas histórias velhas, antigas de séculos. Camões escreveu que ela era donzela, embora não fosse virgem, porque, no tempo do épico maravilhoso, donzela queria dizer mulher nova - e o autor de "Os Lusíadas" referia-se à bela Inês de Castro, cujas desventuras o padre Luciano Duarte conta com graça e leveza de estilo. Dom Pedro príncipe, por deliberação do rei seu pai, casou-se com uma princesa portuguesa, residente na Espanha, que trouxe, na comitiva da noiva, uma dama de companhia de extraordinária beleza, Inês de Castro, por quem o herdeiro se apaixonou. A esposa procurou apagar o fogo do marido, internando a bonita espanhola num convento. Tudo se passou em Coimbra. Dom Pedro manda cartas de amor a Inês e com esta quis casar-se quando ficou viúvo. Era no tempo das intrigas da corte e os nobres se opõem ao casório, com medo de que a Espanha volte a dominar Portugal. O amor principesco é forte demais. A nada cede, Inês mora na Quinta das Lágrimas e no banco de pedra, ao lado da fonte murmurante - conta o padre - o príncipe sempre diz palavras de amor à amada mulher. Jura-lhe fidelidade. Paixão à moda antiga. Mas os nobres do reino não suportam o romance e obtêm do rei licença para tirar Inês do caminho, por via de assassinato, para o que recebeu autorização. O padre Luciano escreve: "E, uma manhã, enquanto Dom Pedro estava longe, três nobres batem à porta de Dona Inês. Esta aparece rodeada de seus três filhos que choram. Os assassinos a conduzem ao jardim, onde a sacrificam". Isto se passou no século XIV, precisamente a 17 de janeiro de mil trezentos e cinqüenta e cinco. Dois anos depois do crime tenebroso, morreu o monarca e Dom Pedro subiu ao trono. Mandou apurar os fatos. Queria justiça.

Conseguiu prender dois dos assassinos, pois o outro fugiu para a Espanha. Abriu as costas de ambos - narra o padre - arrancou-lhes os corações, mordeu-os e atirou-os aos cães. Vingança de rei daquele tempo.

E mandou desenterrar Dona Inês, já toda ossos, assentou-se no trono de Sá de Coimbra, coroou-a a rainha de Portugal e obrigou a corte a beijar a mão do esqueleto. Defunta e soberana, como conta a crônica dos reis e príncipes. Inês de Castro tornou-se personagem de uns dos mais bonitos episódios de "Os Lusíadas" e tem sido assunto de peças teatrais e concepções poéticas sem conta. Já era mãe quando veio em comitiva como dama de companhia da mulher do seu futuro amado. Quantos episódios trágicos enriquecem a vida do homem - dos príncipes e dos humildes indivíduos, vítimas das ambições e ódios alheios e sobretudo da injustiça dos semelhantes. A posteridade, no episódio de Inês de Castro, designou Dom Pedro de o justiceiro, num batismo que a história consagrou.

Sempre que posso leio e releio a história comovente dessa espanhola sacrificada pelas injunções políticas e que teve forças para não repelir os sentimentos de devoção a um grande amor.


A. Tito Filho, 05/12/1987, Jornal O Dia

quinta-feira, 5 de maio de 2011

ALGUNS ASSUNTOS

Do "Jornal do Brasil", edição de 31 do finado, mês de outubro, copio o seguinte: "A cobertura, filé-mignon dos prédios de apartamentos, não é para quem quer, mas fundamentalmente para quem pode: algumas, nas cobiçadas Avenidas Vieira Souto e Delfim Moreira, chegam a custar cinco milhões de dólares (Cz$ 340 milhões, no paralelo) e outras têm até quadra de tênis com vista para o mar - como a do empresário Alfredo Saad - ou jardim de Burle Marx e pomar - como a do escritor Rubem Braga. Na de Saad (Edifício Chopin), na Avenida Atlântica, existe uma suíte dentro de tenda árabe, exclusiva para o rei Pelé; na de Rubem Braga, à beleza de Ipanema se juntam mangueira, jabuticabeira, cajueiro, coqueiro, pitangueira e goiabeira. As mais sofisticadas, além do eixo Delfim/Vieira Souto, concentram-se na Avenida Epitácio Pessoa".

Leram bem os leitores? No último andar de um edifício faz-se o chamado apartamento de cobertura. O de Rubem Braga possui um pomar. Custa essa moradia cinco milhões de dólares. Como vivem milhões de brasileiros? Em casa de taipa, choupanas, habitações inumanas, sub-humanas. Pode o Brasil continuar assim, nesse afrontoso aparato de mansões de superluxo e dependências ociosas? Nesta própria Teresina existem imóveis residenciais de dez ou mais banheiros, alguns utilizados só pelos bichos domésticos, gatos, cães e preás.

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Já demos governadores ao Estado do Rio, a Pernambuco, a Minas Gerais, ao Amazonas. Entregamos prefeitos ao antigo Distrito Federal (Rio de Janeiro). No império, dois ministros: Francisco José Furtado (Justiça) e o marquês de Paranaguá, que ocupou três pastas - da Justiça, da Guerra e da Fazenda... Ao tempo da República Velha, Governo de Artur Bernardes, um ocupante de Ministério, José Félix Alves Pacheco (Relações Exteriores), que veio à luz na ensolarada Teresina. A República Militar, instituída em 1964, convocou piauienses para funções ministeriais: Reis Velloso (Planejamento), Petrônio Portella (Justiça) e Waldir Arcoverde (Saúde). A Nova República agora recebe Hugo Napoleão do Rego Neto. Registra-se o esclarecimento ora confiado aos que desconhecem os fatos.

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Amigos bondosos fizeram-me interrogações sobre uma novela que se exibe recentemente com personagem de Sófocles, sobressaindo Jocasta e Édipo. Pelo que me contaram o extraordinário grego está sendo deturpadíssimo.

Quem melhor entendeu a tragédia do autor citado foi Freud, da qual tirou o complexo de Édipo. A censura no Brasil devia existir para que se evitassem grosseiras deturpações das obras de escritores falecidos e que merecem o respeito das gerações sucessivas.


A. Tito Filho, 04/11/1987, Jornal O Dia

segunda-feira, 2 de maio de 2011

TIPOS POPULARES

Tipo popular poderia ser toda pessoa que se projetasse na coletividade, como Rui Barbosa, João Figueiredo, Jânio Quadros, Pelé, Rogéria. Mas tipo popular sempre convoca as atenções gerais por motivos outros, de excentricidade no trajar, debilidade mental, hábitos extravagantes, idiotice, trejeitos, e modos de ser e de viver diferentes do comum das gentes. Teresina coleciona várias dessas individualidades nos dois sexos. A crônica registra o Balaieiro, criador do verbo chumar com o significado de beber cachaça. Sentava-se à porta da casa, tardezinha, a  tocar a viola. A todos dava o tratamento de meu bem. Quando bebia muito, a mulher Aninha ia buscá-lo, no boteco, naquele tempo chamado bodega. Houve o Maromba, inteligente, discursador, arrebentava rapadura no couro da cabeça. Fazia boné de couro de guariba. A Capitoa, muito conhecida, chamava-se Martiniana. Descendia de africanos. Corpulenta. Nascida na antiga capital piauiense, Oeiras. Usava chapéu de palha. Na mão, o pandeiro, com que tirava reis na época propicia. Esses três não foram do meu conhecimento pessoal. Quando me entendi nesta Chapada do Corisco outros faziam praça. Não gravei as denominações de vários. Ainda conheci o Dondon, repórter, redator, tipógrafo, revisor, diretor, impressor, vendedor, tipógrafo, revisor, diretor, impressor, vendedor, proprietário do jornal "O Denunciante", noticioso, critico, censor de costumes, espinafrador de políticos e administradores. Um dia os poderosos consideraram louco o jornalista e vingativamente o puseram no hospício dos alienados. Quando saiu, pensou-se que recuaria nas censuras e espinafrações. Desassombroso, reapareceu mais violento, sem que lhe faltasse o esclarecimento identificador do parafuso frouxo: "O dono deste jornal esteve recolhido ao asilo dos doidos, onde passou dez dias, seis por conta do Governo e quatro por sua própria conta". Exerceu ainda o ofício de vendedor de feixes de capim em lombo de jumento. Três animais, ensinados, treinados militarmente. De acordo com a voz de comando de Dondon, os jegues seguiam pela direita, pela esquerda ou efetuavam alto. Dava gosto ver o comandante pelas ruas, calças sungadas até os joelhos, alpargatas vistosas, camisa de manga arregaçada, oferecendo capins aos burros de Teresina.

Conheci Jaime Doido, dos mais catados birutas da cidade. Famoso cabo de eleições da antiga União Democrática Nacional. Não gostava de dinheiro muito. Só o necessário. Dinheiro muito fica dono da gente - explicava - na forma de bom e leal lelé da cuca.

Estive algumas vezes na choupana de Maria Sapatão, num terreno desocupado que meu pai adquiriu e lá construiu a residência, casa respeitável, hoje repartida em compartimentos comerciais - um crime que se praticou contra a memória de Arimathéia Tito.

Maria Sapatão era gorduchora, beiços grandes, dentes alvos, peitos caídos, pernas grossíssimas, barriguda e bunduda, pezões nos sapatões famosos, enfeitava-se de um dilúvio de voltas baratas no pescoço, boa dúzia de pulseiras nos braços roliços, anéis pelos dedos das mãos, até no polegar. Semelhava o toque de pobreza idiota passeando nas ruas.

Avião continua na paisagem. Põe caixa enorme de papelão na cabeça e sai a enchê-la de quanta porcaria arrecada pelas calçadas. Aprecia encontro noturno com perus em quintal de casa alheia. Vive a imitar velhos filmes seriados de aviação.

Desapareceram quase os tipos populares. Agora tudo se povoa de alegres veados e buliçosas sapatões. Sinal de novos tempos.


A. Tito Filho, 04/12/1987, Jornal O Dia

domingo, 1 de maio de 2011

OS DOIS REGIMES

Para mim, todos os regimes de Governo são bons, desde que os homens tenham asseio moral e competência para o desempenho das funções. Só não prestam as ditaduras - e estas não constituem regime político, mas aberração. Agora se diz que o presidencialismo brasileiro nunca prestou, tem sido de muita instabilidade. Renunciou Deodoro. Assumiu Floriano, que enfrentou duas revoluções. No Governo Prudente houve Canudos. Revolta contra a vacina no tempo de Rodrigues Alves. O presidente Hermes enfrentou agitações. Chegaria a época do tenentismo. Revolta do Forte de Copacabana. Coluna Prestes. Derribada de Washington Luís. Até 1930, os eleitos governaram todo o mandato, com exceção do que morreu presidente, Afonso Pena. A bagunça generalizada começou com o golpe de 30. Getúlio passou 15 anos, de rasteira em rasteira. Caiu em 1945. Governo de transição. Em seguida, Dutra, e novamente Getúlio, morto com as próprias mãos no Catete. Assumiu Café Filho, golpeando. Carlos Luz também. Nereu Ramos encarregou-se de transmitir o cargo a JK. Reino do renunciador Jânio. Vice Goulart na chefia, casuísmo parlamentarista, plebiscito, retorno ao presidencialismo, queda do presidente. Vinte anos de severa ditadura. Morte de Tancredo, o maranhense Sarney na crista da onda, ainda no lugar. E no regime parlamentar do Império? Dom Pedro sagrou-se imperador a 1-12-1822. Um ano depois, dissolveu a Constituinte, prendeu deputados, e acabou outorgado a Carta Magna. Em 1824, Confederação do Equador. Correm os anos. Noites da Garrafadas. Abdicação. Regências. Revolução de Miguel de Farias. Abrilada. Cabanagem. Guerra dos Farrapos, revoltas no Pará. República de Piratini. Sabinada. Invasão de Santa Catarina. Balaiada. Maioridade de Pedro II. Revoltas em Minas e São Paulo. Praieira de Pernambuco. Questão religiosa e prisão dos bispos. Libertação dos escravos em 1888. Queda do Império. Expatriamento do monarca e da família imperial.

Não se fizeram referências a guerras no exterior, nem a revoltazinhas internas como as duas contra Juscelino e até uma no Piauí chefiada pelo cabo Amador, do Exército Nacional.

Pedro II passou 49 anos como imperador do Brasil. Até 1930, os presidentes cumpriram os mandatos respectivos. A geral confusão, com três ditaduras violentas, teve inicio depois da queda de Washington Luís: de 1930 a 1934 (ditadura Vargas), de 1937 a 1945 (Estado Novo - cruel ditadura getuliana), 1964 a 1984, terrível regime militar.

O Parlamentarismo vigora na Europa, na Ásia, em alguns países africanos e alguns americanos com excelentes resultados e forte estabilidade. O Presidencialismo participa mais das Américas, sobretudo a do Sul, em que o presidente tem mais poderes pessoais do que vários sobas africanos. No Brasil, em matéria de regime, parlamentarismo ou presidencialismo, no momento, qualquer que seja adotado será regime vicioso e viciado, pois os políticos são os mesmos em cada um deles.


A. Tito Filho, 03/12/1987, Jornal O Dia