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segunda-feira, 2 de maio de 2011

TIPOS POPULARES

Tipo popular poderia ser toda pessoa que se projetasse na coletividade, como Rui Barbosa, João Figueiredo, Jânio Quadros, Pelé, Rogéria. Mas tipo popular sempre convoca as atenções gerais por motivos outros, de excentricidade no trajar, debilidade mental, hábitos extravagantes, idiotice, trejeitos, e modos de ser e de viver diferentes do comum das gentes. Teresina coleciona várias dessas individualidades nos dois sexos. A crônica registra o Balaieiro, criador do verbo chumar com o significado de beber cachaça. Sentava-se à porta da casa, tardezinha, a  tocar a viola. A todos dava o tratamento de meu bem. Quando bebia muito, a mulher Aninha ia buscá-lo, no boteco, naquele tempo chamado bodega. Houve o Maromba, inteligente, discursador, arrebentava rapadura no couro da cabeça. Fazia boné de couro de guariba. A Capitoa, muito conhecida, chamava-se Martiniana. Descendia de africanos. Corpulenta. Nascida na antiga capital piauiense, Oeiras. Usava chapéu de palha. Na mão, o pandeiro, com que tirava reis na época propicia. Esses três não foram do meu conhecimento pessoal. Quando me entendi nesta Chapada do Corisco outros faziam praça. Não gravei as denominações de vários. Ainda conheci o Dondon, repórter, redator, tipógrafo, revisor, diretor, impressor, vendedor, tipógrafo, revisor, diretor, impressor, vendedor, proprietário do jornal "O Denunciante", noticioso, critico, censor de costumes, espinafrador de políticos e administradores. Um dia os poderosos consideraram louco o jornalista e vingativamente o puseram no hospício dos alienados. Quando saiu, pensou-se que recuaria nas censuras e espinafrações. Desassombroso, reapareceu mais violento, sem que lhe faltasse o esclarecimento identificador do parafuso frouxo: "O dono deste jornal esteve recolhido ao asilo dos doidos, onde passou dez dias, seis por conta do Governo e quatro por sua própria conta". Exerceu ainda o ofício de vendedor de feixes de capim em lombo de jumento. Três animais, ensinados, treinados militarmente. De acordo com a voz de comando de Dondon, os jegues seguiam pela direita, pela esquerda ou efetuavam alto. Dava gosto ver o comandante pelas ruas, calças sungadas até os joelhos, alpargatas vistosas, camisa de manga arregaçada, oferecendo capins aos burros de Teresina.

Conheci Jaime Doido, dos mais catados birutas da cidade. Famoso cabo de eleições da antiga União Democrática Nacional. Não gostava de dinheiro muito. Só o necessário. Dinheiro muito fica dono da gente - explicava - na forma de bom e leal lelé da cuca.

Estive algumas vezes na choupana de Maria Sapatão, num terreno desocupado que meu pai adquiriu e lá construiu a residência, casa respeitável, hoje repartida em compartimentos comerciais - um crime que se praticou contra a memória de Arimathéia Tito.

Maria Sapatão era gorduchora, beiços grandes, dentes alvos, peitos caídos, pernas grossíssimas, barriguda e bunduda, pezões nos sapatões famosos, enfeitava-se de um dilúvio de voltas baratas no pescoço, boa dúzia de pulseiras nos braços roliços, anéis pelos dedos das mãos, até no polegar. Semelhava o toque de pobreza idiota passeando nas ruas.

Avião continua na paisagem. Põe caixa enorme de papelão na cabeça e sai a enchê-la de quanta porcaria arrecada pelas calçadas. Aprecia encontro noturno com perus em quintal de casa alheia. Vive a imitar velhos filmes seriados de aviação.

Desapareceram quase os tipos populares. Agora tudo se povoa de alegres veados e buliçosas sapatões. Sinal de novos tempos.


A. Tito Filho, 04/12/1987, Jornal O Dia

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