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sexta-feira, 24 de junho de 2011

CIÊNCIA E PACIÊNCIA

Mais de vinte anos o nosso conterrâneo do Piauí - Samuel Dourado Guerra dedicou ao estudo do vocabulário - e fez pesquisas pacientes, nos domínios da etimologia e da morfologia, das quais concebeu um dicionário utilíssimo aos que buscam conhecer significados e correto emprego das palavras portuguesas.

Não se ignora que o nosso idioma provém das lentas modificações que o latim sofreu na Península Ibérica. Os dominadores sofreram estragos na língua que falavam, por virtude dos hábitos fonéticos dos povos dominados. Celtas e iberos só com grande esforço de voz reproduziam o d intervocálico. Assim, o pede romano passava a pee e, afinal, na forma vigente, . A raiz, porém, se encontra na origem latina ped, donde os derivados pedestre, pedal. De ovis, ovelha, da língua do Lácio, se fez ovino, mas ovino não vigorava na fala do povo, porque este deu preferência às formas mais expressivas, mais cheias de vida - e empregava, em lugar de ovis, o diminutivo ovícula para designar ovelha, depois das lentas transformações fonéticas de ovícula (ovilha, ovelha). De ovelha se fizeram ovelhum, ovelheiro, na língua de Camões.

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Os povos têm hábitos fonéticos. Brasileiros e portugueses reproduzem com dificuldade o grupo vl - daí por que Vladimir se transmuda em Valdimir. E o povo emparabolam = parabola = parabla = paravla deslocou o r para o lugar do l e vice-versa: palavra.

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O português se enriqueceu também do elemento árabe ainda na Península Ibérica. Incorporaram-se ao léxico centenas de palavras, a exemplo de açougue, alfinete, açude, almofada, almoxarife, açucena, açúcar e quantos derivados se façam dos arabismos. Que dizer do grego? Fonte de batismo de inventos, de teorias filosóficas, de cousas da medicina - os elementos gregos vivem na linguagem de todos os dias, como em telégrafo, telefone, teologia, cardiopatia e centenas de outros.

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Inglês, francês, espanhol, italiano, alemão, japonês, hebraico juntaram muitas palavras ao português - resultado de relacionamento entre nações e da necessidade dos empréstimos lingüísticos. Não se pode exonerar da linguagem das camadas sociais lanche, terrina, mantilha, palhaço, dança, quimono, aleluia - aportuguesamento de variado estrangeirismo.

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J. Marouzeau escreveu a raiz é o elemento irredutível da palavra obtido por eliminação de todos os elementos secundários de formação, característico de um conceito dado e suscetível de figurar, intacto ou modificado, nas diversas formações que constituem uma família de palavras - e se torna interessantíssimo o parentesco destas. Em grego anemo vale ar, vento, sopro. O latim tem anima, ae, ar, sopro, e animus, i, princípio pensante. De anima e da dissimilação da primeira nasal n em l, alima, dimanaram animal, animalão, animalejo, animalismo, animalista, animalesco, animar, animação, animador, alimária e outros cognatos. Da queda do i átono de alima resultou alma. Uma numerosa família de palavras, como se vê. E de animus, masculino, saíram animismo, animista.

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Entendemos que o ponto fundamental do trabalho de Samuel Guerra seja relacionar, num verbete geral, todas as palavras com ele relacionadas e constitutivas de uma família - justamente aquela família resultante de derivação por prefixos e sufixos. A tal conjunto familiar se ajuntaram outros significados provindos de línguas diferentes, outros aspectos vocabulares, portanto.

Registrando peixe, da raiz latina alterada peix, por exemplo, arrola, sob o mesmo teto, peixada, peixaria, peixeira, peixão, com sufixos vernáculos; e relaciona piscina, piscívoro, psicultura, psicultura, psicultor, adquiridos pela raiz latina psi. Vai além: registra pesca, pescado, pescador, que promanaram da raiz alterada pesc. O pesquisador prossegue, na ânsia do trabalho perfeito, e escreve a forma grega de peixe - ictio, donde se fizeram ictiofagia e ictiófago.

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Samuel Dourado Guerra realizou estudo único, original, culto, autêntico esforço de ciência e paciência. Falta apenas a publicação.


A. Tito Filho, 24/11/1987, Jornal O Dia

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